Não acredito que consiga mudar a opinião de ninguém, mas vou aproveitar a oportunidade para rebater alguns dos argumentos do "sim". É enorme, leiam só se tiverem paciência.
Primeiro, a lei actual. Diz-se da mesma que esta é extremamente repressiva - não é verdade.
A lei portuguesa é muito semelhante à espanhola, divergindo sobretudo na sua aplicação. Aliás, o PSOE foi eleito em Espanha sob a promessa de liberalizar não só os casamentos e adopções gays, mas também o aborto. Alem disso, há notícias de diversas clínicas abortivas espanholas que pretendem instalar-se em Lisboa, independentemente do referendo.
A lei portuguesa é repressiva única e exclusivamente na medida em que consagra o aborto como crime por parte da mulher. A não liberalização do aborto não é incompatível com deixar de punir as mulheres. Foram já apresentadas na assembleia diversas propostas para suspender a aplicação de penas às mulheres - foram todas rejeitadas pelo PS (até porque julgamentos com manifestações à porta fazem o jogo do sim...)
Segundo, a pergunta. Vamos por partes.
"Concorda com a despenalização..." Visto que isto levantou dúvidas, vou comentar. Despenalizar é remover uma pena. Não, não continua a ser crime, visto que não há crimes sem pena (quando muito há penas sem crime). Por outro lado, não quer dizer que seja livre, um direito.
Continuemos... tudo certo, não fora o resto da pergunta.
"da interrupção voluntária da gravidez..." Um eufemismo barato para aborto, sob a desculpa de que aborto é sempre termo ilícito (contrastar esta ideia com o termo médico "aborto espontâneo").
"se realizada, por opção da mulher..." Note-se: por simples opção da mulher, nada mais é consagrado - começamos já a entrar onda na liberalização.
"nas primeiras dez semanas" E depois? Mantêm-se a lei e as penas, muda-se a gosto..?
"em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?" Chegamos à parte que consagra a vitória absoluta da liberalização sobre despenalização - autorizam-se e legalizam-se estabelecimentos.
Mas que perguntas ficam pelo meio? Despenaliza-se quem, a mulher, o médico..? Opção da mulher, nada mais a considerar? E o pai, que direitos? E o processo, simples, rápido e indolor? E depois das 10 semanas, tribunal, prisão, para a mulher, para todos? Que estabelecimentos, financiados como? Da pergunta não retiramos nada.
Terceiro, a lei que se quer aprovar.
A lei que se quer aprovar sob a coberta desta pergunta, oferece a liberalização total do aborto até às 10 semanas, passando este a ser um direito inalienável da mulher. Não se consagra nenhum mecanismo de controlo. Mas mais hipócrita, não se muda uma vírgula sobre o que se passa quando o aborto é feito depois das 10 semanas, ou fora de estabelecimento legalmente autorizado. Aí punem-se não só os médicos, mas também as mulheres, com pena de prisão.
Finalmente, alternativas, discussão, etc.
A lei que temos, aplicada de outra forma (como em Espanha), é uma alternativa. A lei do Reino Unido, que prevê que a mulher deve dar uma justificação para o aborto, e convencer pelo menos dois técnicos a autoriza-lo (sejam médicos, psiquiatras, psicólogos, técnicos de planeamento familiar, assistentes sociais), é uma alternativa. As leis de diversos países que impõem um periodo de reflexão obrigatório de 24 a 48h (durante o qual a mulher tem que receber aconselhamento, e apenas após o qual pode tomar uma decisão final), são alternativas.
Porque é que, se esta é uma discussão que divide a sociedade portuguesa, não se ouve falar de tais alternativas, como forma de salvaguardar os interesses de quem moderadamente não quer ver o aborto a pedido liberalizado? Ganhariam o meu voto!
Se o aborto deve ser desencorajado, e se ninguém é a favor do aborto (afirmação que contesto veementemente quando me dizem "são só células" ou "é como cortar as unhas dos pés"), porque não aparece mais gente do "sim" a promover posições que desencorajem o aborto e que permitam chegar a um compromisso? E porque se quer aprovar uma das leis mais liberais do mundo relativamente à questão, sob a coberta da despenalização das mulheres?
Já agora, quanto a algumas das posições tomadas por estas bandas...
É impossível salvaguardar a posição do pai porque não há testes de paternidade? Até há, mas OK. Agora e o contrário? Fazendo de advogado do diabo - e se o pai quiser o aborto? A mulher tem direito a dizer que não e ter o filho - tudo certo. Mas porque há-de ter direito a depois pedir pensão de alimentos para o seu filho? Se a mulher se pode demitir da paternidade a pedido, porque não pode o pai? Até pode não ser viável saber com certeza quem é o pai e dar-lhe direitos, mas há muito de assimétrico nesta lei relativamente a isso.
A ideia de que ninguém vai abusar da lei. Toda a gente prefere tomar a pílula do que ir à faca, certo? Não - ridículo! Até às 10 semanas não se vai à faca. Em grande parte de tal periodo basta tomar uma pílula abortiva. Mesmo depois de esgotada essa oportunidade o procedimento é simples, faz-se numa consulta de ginecologia, e é óbvio que sem internamento. À faca vai continuar a ir-se bem depois das 10 semanas, e não só ilícita como ilegalmente. A lei vai ser abusada com abortos repetidos, basta analizar estatísticas de outros países. E vai continuar a fazer-se tudo e mais um par de botas à margem da mesma.
Alguém duvida?
Mas estatísticas então. Em Espanha estudos indicam que o aborto é de longe a maior causa de morte - a maior, mais que as doenças cardiovasculares, mais que o cancro. Nos EUA estima-se que 43% das mulheres terão realizado pelo menos um aborto quando chegam à idade de 45 anos, que 47% dos abortos são pedidos por mulheres que já haviam realizado abortos anteriormente, e que 54% das gravidezes não desejadas acaba em aborto. Não são números marginais.
O aborto não um tópico quente só em Portugal, nem a tendência é sempre para a liberalização. Em Espanha o PSOE optou por deixar na gaveta a promessa da liberalização do aborto. Em França não há muito tempo houve uma manifestação para desliberalizar o aborto, impor limites. E no Reino Unido, em que a lei já consagra diversos limites, sondagens indicam que a maioria pensa que a lei é demasiado liberal - particularmente os jovens. De todas a notícia mais publicitada em Portugal é a menos relevante: na Alemanha o estado oferece uma quantia significativa a todos os que decidam ter filhos.
No quadro actual, infelizmente, não vejo hipótese alguma de virmos no futuro próximo a ter uma racionalização do acesso ao aborto se o "sim" vencer. E desenganem-se: é do "sim" a esponsabilidade de nos convencer que mudamos para melhor. "Está tudo mal, vamos mudar para diferente", não me convence; "vamos deixar de meter as mulheres na prisão" é uma resposta demasiado simplista para este problema (até porque nenhuma alguma vez foi para a prisão, e as que foram julgadas continuarão a se-lo, pois abortaram bem depois das 10 semanas).
Liberalizar o aborto (ou despenaliza-lo nestes termos, se preferirem) é um erro. Por mim, sem dúvida, assim não!
Nuno